Eu era sua prisioneira por anos, e anos. Presa, em uma maldita torre, confinada a olhar o sol apenas por uma fenda pequena entre as pedras. Quase não passava luz por ela, e assim, deixava o quarto escuro o tempo todo.
Eu nunca soube bem o porque de ser prisioneira de tal criatura tão cruel. Por mim, ele tinha compaixão. Seus olhos brilhavam quando me viam. Ele me visitava algumas vezes durante o dia, mas quase sempre se sentava na poltrona verde de textura gasta e coberta de pó no canto do meu "quarto". E me observava dormir. Eu não lembro a última vez que senti medo dele. Na verdade, eu sentia pena de sua vaga existência.
Já não lembro quantos são os anos que estou aqui. Ele me trazia livros, e algumas vezes até os lia para mim. Eu sempre resmungava, e me fazia indiferente a sua presença. O que o deixava triste. Mas ele insistia em ser cordial. Nunca lhe faltei o respeito. Mesmo sabendo de seus horrores. E ele também não fazia questão de esconder os vestígios de suas maldades. Uma vez que algumas noites eu o via com o rosto úmido de um líquido que escorria pelo seu queixo de mármore. Não se via cor - uma vez que o quarto estava sempre com o mínimo de luz. Propositalmente? Não penso. Mas ele sabia que eu não poderia odiá-lo. Não podia. O odor do líquido condenava a sua essência. Deixava-me cheia de náuseas. E eu me contraia em cima da cama, abraçada a uma almofada, não encarando os olhos que cintilavam na escuridão.
Uma vez ou outra, eu tinha a ideia de tentar fugir. De abandona-lo e condena-lo a viver sozinho ali. Rasga-lo com o castigo da solidão. Mas isso apenas iria destruir o pouco de humanidade que ainda havia em seu coração. Então eu choramingava, sentindo o cheiro fresco da noite pela fenda fria.
Nossa história era bonita. Começava como um conto de fadas. Mas terminou em uma desgraça. Eu sabia, de algum jeito, que terminaria assim. Mas éramos feitos um para o outro. A minha luz retardava sua escuridão. E a sua escuridão envolvia minha luz como uma brisa macia, mas que a sufocava. Ficávamos neutros um perto do outro. Assim éramos seguros. Ele era seguro. Mas a muito tempo sua natureza o consumiu. Não que ele o tenha querido. Foi nosso castigo. Não podíamos ficar juntos. Mas devíamos. Quem poderia entender? A quem podíamos protestar?
Podem nomear-nos anjos. Fantasmas. Deuses. Forças da natureza. O que quer que focemos, era horrível. Eu não queria ser-lo mas.
Meu trabalho antes disso, era apenas entrar na vida das pessoas, e mostrar o caminho certo a seguir. Refrescar o quão a vida é preciosa. E é. Eu mais que ninguém sei disso. Eu gostava ver a todos prosperarem. Eu gostava de ajudar. Mas, por mais íntima que eu me tornasse dessas pessoas, elas jamais iriam lembrar que eu existi. Eu só entrava em suas vidas, e saía. Como uma brisa. Faço isso desde a existência do mundo. Desde a criação das almas.
Porém, ele também.
Seu serviço é o contrário do meu. Ele adoecia as mentes fracas, e as fazia corromper. Era sua maldição. Ele não gostava. Mas o fazia naturalmente. Como o rei Midas. Só que ao invés de ouro, transformava tudo em escuridão e tristeza.
Seres como nós não deviam sentir. Mas nós sentimos. E nos envolvemos. Éramos como imãs. Perto um do outro, nosso ofício se anulava. E ficávamos fracos. Mortais. Quase humanos. Porém nossa relação era proibida. Interferia na natureza do mundo. Conspirava contra o universo. Mas nós não ligávamos. Apenas... encontrávamos calor um no outro. Era bom.
Quando descobriram, preencheram seu coração cheio de carinho com doses e doses de seu verdadeiro instinto. Eram tempos onde a humanidade ainda era bárbara, e não foi difícil toma-lo de mim.
Ele lutou tanto para se libertar... Mas é o que ele é.
Ele é o breu.
Eu sou a luz.
E assim que deve ser.
Não devia.
-Não quero ouvir histórias de ti. Deixa-me só. - Eu sussurrei na escuridão do quarto. Meus pés se esmagavam um no outro, procurando calor em cima da cama.
Ele suspirou.
Eu sabia que por mais que eu quisesse mostrar devoção a ele, ali ele era só uma alma vaga. Ele sentia que eu lhe era importante. Mas não lembrava meu nome. Não sabia quem eu era. Ele sentia dor quando estava longe de mim. E minha presença era sua medicina. Sua dor, era seu coração gritando pela metade que lhe foi arrancada, e a escuridão tentando mata-la e amordaça-la, queimando e pulsando, como um corte tão profundo que fazia doer os ossos. Mas era só. Ele jamais iria saber porque sentia aquilo. Seu castigo era a dor da falta, o esquecimento.
O meu era lembrar.
E fomos trancados no anti-mundo. Ali não era céu, nem purgatório. Era apenas um nada. Fizeram-nos um cenário de um bosque sem fim, que se estendia infinitamente. Então fugir não era lá uma opção tão boa.
Ele me trancava na torre não por maldade. Mas porque sentia que eu era importante. E que se me perdesse sua dor iria queimar, se alastrando por toda sua existência. O pior era não poder morrer. Apenas existir com aquilo.
E assim eram nossos dias.
-Benjamim - o chamei com a voz abafada.
Ele gemeu no escuro. Nunca falava. Eu quase não me lembrava de sua voz.
-Vai. Já está anoitecendo. Alimenta-te enquanto tens liberdade. - Eu sibilei, em tom firme. - Some de minha vista.
Eu o tratava como um animal na maior parte do tempo. Como ele não se lembrava como se portar humanamente, não fazia diferença.
Quando ele deixava o quarto, eu chorava. Meu peito doía.
O amor dói, sufoca e arde.
Quando eu escutava suas vestes farfalhando para longe, eu me punha de pé, com a coberta na cabeça como se fosse um véu. Meus poderes ainda se manifestavam. Mesmo que tentaram drena-lo quase todo, eu sou feita de luz. E me divertia fazendo rabiscos de luz no ar. Eu girava até ficar tonta, cortando o ar com as pontas dos dedos, iluminando o quarto, e revelando sua estrutura. Era bom sentir o calor da luz saindo das pontas dos dedos. Mas eles eram breves. Apesar do rastro luminoso ficar por alguns instantes no ar, ele ia desaparecendo, e logo tudo voltava a ficar escuro. Então eu tentava girar até não conseguir manter-me em pé.
-Faça-te real. Por favor... Dá-me uma chance. - Eu riscava uma porta no ar. Mas ela sempre desaparecia.
Se ainda possuísse meus poderes, o contorno iria se solidificar, e dali brotaria madeira, como a casca de uma árvore crescendo de todo o contorno luminoso. E se faria um portal. Mas eu estava fraca.
Benjamim tinha seus poderes por inteiro ainda. Ele apenas não sabia como usa-los, se não para alimentar-se das almas corrompidas que jogavam em nosso foço. Eu nunca tentei faze-lo usar, porque ainda sim, o amava, e sabia que se o usasse como instrumento, as outras forças iriam castiga-lo, o fazendo amordaçar de dor, e viriam atrás de mim. Nada adiantaria.
Benjamim tinha seus poderes por inteiro ainda. Ele apenas não sabia como usa-los, se não para alimentar-se das almas corrompidas que jogavam em nosso foço. Eu nunca tentei faze-lo usar, porque ainda sim, o amava, e sabia que se o usasse como instrumento, as outras forças iriam castiga-lo, o fazendo amordaçar de dor, e viriam atrás de mim. Nada adiantaria.
Existia apenas uma coisa que poderia, porém, tirar-me dali. A minha morte. Impossível.
Meus dedos tremeram no ar, e as faíscas de luz falharam. Me ajoelhei, tremendo, como sempre me perturbava, e chorei alto, sentindo as lágrimas quentes escorrendo pelas minhas bochechas. Eu as sentia corar, ficando quentinhas, quase ardendo.
Eu gostava dos sentimentos humanos. Eram bons. Muito brutos, mas eram bons. Nasciam da luz, mas durante a vida de um mortal eram corrompidos. Os humanos seriam puros e belos se não existisse criaturas como Benjamim.
Eu gostava de sentir-me humana. E se eu pudesse abandonar a imortalidade para ser humana, eu o faria de bom grado.
Me encolhi em uma bolinha no chão, abraçando minhas pernas. Sentia meus cabelos longos se sujando de poeira. Mas para limpa-los só constava de fazer-me iluminar, como uma lâmpada, e a luz me purificava. Eu gostava de sentir todas aquelas coisas. E chorar me fazia feliz. Me dava esperança de alguma forma. E me aliviava depois que eu engolia o choro e apenas soluçava.
Então eu dormia. Me arrastava até a cama, e permitia-me fechar os olhos. Não que eu precisasse dormir. Mas eu tentava.
Sabe, seres da luz podiam ainda ter as mesmas sensações que os humanos: o tato, paladar, olfato, visão e audição. Mas não sentimentos. Quanto aos seres das trevas, não podiam nada daquilo. Eu envolvi Benjamim com a minha luz, e ele pôde desfruta-los também. Mas normalmente, os seres das trevas apenas ocupam o breu, e entram na mente das pessoas através dos momentos mais difíceis da vida de alguém. Sua forma humana era apenas usada quando estavam muito fortes.
Então eu dormia. Me arrastava até a cama, e permitia-me fechar os olhos. Não que eu precisasse dormir. Mas eu tentava.
Sabe, seres da luz podiam ainda ter as mesmas sensações que os humanos: o tato, paladar, olfato, visão e audição. Mas não sentimentos. Quanto aos seres das trevas, não podiam nada daquilo. Eu envolvi Benjamim com a minha luz, e ele pôde desfruta-los também. Mas normalmente, os seres das trevas apenas ocupam o breu, e entram na mente das pessoas através dos momentos mais difíceis da vida de alguém. Sua forma humana era apenas usada quando estavam muito fortes.
Foi quando o conheci. Lembro-me que estávamos em tempos difíceis da humanidade. Não lembro mais os séculos. Mas sua forma humana era tão bela que parecia cintilar. Ainda é belo. Mas não humano. Tem cabelos castanhos bem escuros, vivos, despontados e sedosos. Muito lisos, eram mais compridos na nuca, e ele costumava amarra-los em um rabo-de-cavalo. Os olhos muito azuis, a pele tão branca que parecia estar morto - e estava. Seus dentes eram perfeitamente brancos, e cabiam no sorriso brilhante que lhe pintava os lábios. Tinha um queixo bem definido, e os contornos mais bem modelados que eu já vira. O mal tinha de ter o poder da persuasão e da sedução. Mas nunca me atraíra, afinal, tínhamos sentidos, não sentimentos. Nosso caso foi uma pérola da humanidade.
Ainda lembro que ele era bem alto, eu diria quase dois metros. Quase. Magro, sem músculos, apenas com os braços um pouco mais robustos. As sobrancelhas bem grossas é definidas. Davam lhe um ar tristonho todo o tempo, mas não interrompiam sua beleza. Sedutor, firme nas palavras e encantadoramente intimidador. O que fazia a todos lhe temerem. Tinha aparência de um jovem adulto. Normalmente assim éramos.
Eu não o via sob a luz a tempos. Tentava não ver sua aparência, para não alimentar meus sentimentos. Nunca entenderam porque nós podíamos ter aqueles sentimentos. Era impossível. Mas assim era. E sempre foi nosso mistério.
Lembrando disso tudo, na cama, me encolhi na almofada. Prendi a respiração - não que eu precisasse respirar. E tentei sonhar um novo sonho.
Onde eu era apenas eu. Nada de luz nem trevas.
-Destrói-me. - Sussurrava solitária.
-Destrói-me. - Sussurrava solitária.
E de repente, todo meu corpo se sentiu quente e acolhido. E quando abri os olhos, não conseguia mais enxergar. Aquela luz me cegava, e brilhava tão forte, que parecia o sol, irradiando um calor confortável.
Confusa, me puis de pé. Eu queria tocar a fonte daquela luz. Sim, não era apenas uma luz. Era algo. Não, alguém. E eu espremia meus olhos para enxergar sua face, inutilmente. Sorri.
Confusa, achei que era epenas um sonho. Mas implorei, de joelhos, deixando meus olhos marejados que quem quer que fosse, que me tivesse piedade. Não podia ser pecado amar. E uma mão brilhante se estendeu a minha frente. Eu estiquei meus dedos, vacilantes e tremendo.
E morri. Com um sorriso.
-Levá-me dessa existência. - E meu coração desejou tão forte, que me queimou.
E me desfiz em mil borboletas douradas, libertando-me.
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