(2)



     Minhas mãos tremiam enquanto eu me concentrava em sentir seu cheiro. Mas não estava ali. Se fora.

    Me misturava com a noite, ziguezagueando pelas árvores, permitindo que a escuridão me tocasse gentilmente. Esperava encontrar alimento. E de certo, iria. Aquele lugar estava repleto de almas perdidas. Eram todas diferentes, porém, sempre as mesmas. Todas tinham o mesmo gosto. Uma delas tentava inutilmente fugir entre a mata. Seus corpos eram apenas uma chama fraca próxima do fim. E elas, ainda, não sabiam disso. Me divertia as vendo em sua perdição, chorando, gritando, e agonizando. Me provocava excitação. E então, quando muito cansadas de fugir, eu me aproximava como uma brisa, me fazendo gentil. Naquela noite, eu achara muitas vítimas. Uma delas me chamou a atenção.
    Ali estava um garoto bem jovem. Não teria mais que catorze anos. Ele ria euforicamente. Normalmente, quem era engolido pela escuridão, não se dava conta que já não existia. Mesmo que tenham deixado suas cascas mortais para trás, a alma é mais sensível que o corpo vivo. A dor é mais intensa e vibrante, porque era tomado de lembranças. Aquele pobre garoto vomitava enquanto ria. Parecia que aquele era seu fardo. Me divertia vivendo as histórias das mentes doentias que se perdiam. Eu as lia em minha mente. Aquele menino, quando vivo, era filho do dono do circo. E, como todos os seus irmãos, era obrigado a trabalhar no picadeiro. Não gostava que rissem dele. Um dia perdeu o controle e endoideceu. Tinha roubado a navalha de barbear do pai e matado toda a família enquanto dormiam, rasgando os lados da boca de todos os corpos, os fazendo sorrir. E depois se matara. E sua alma fora engolida pela escuridão.
    Parecia querer ajuda. Seus olhos tremiam, deixando as lágrimas escorrerem por suas bochechas coradas. Eu o abracei.
    -Liberta-te dessa dor, criança. - Eu sussurrei.
    Ele ainda ria enquanto enterrava o rosto molhado na minha barriga. Meu corpo estava faminto. Passei umas das unhas em seu pescoço macio, lhe cortando. O sangue que brotava da alma era mais puro que o sangue quente dos vivos. Era negro como a noite, e cheiroso como um jardim de rosas. Eu o levantei do chão, o segurando em meu colo, tomando do sangue que escorria. Ele, então, começara a espernear, mas ainda sim, não conseguira se livrar das risadas sufocantes.
    -Se comporte. Sou tua salvação. Graças a mim, não vais passar a eternidade carregando teu passado. - Falei tranquilamente, tentando conforta-lo.
    Então fiz o breu brotar de mim. Uma escuridão sólida que entrava pelas cavidades do garoto. Logo, dentro daquele corpo temporário, já não haveria mais chama, o pouco de luz que lhe sobrara. E me sentia mais forte. E então ele se esfumaçava, aos gritos, e logo deixava de existir.
    Eu sorri, contente com aquela caçada. Ainda sentia meu rosto úmido de sangue negro e lambi o beiço. Aquele sangue perfumado era o mais próximo de calor que eu conseguia sentir. Mas logo ele perdia a vitalidade, e era apenas um caldo negro, uma vez que esfriava já não era tão cheiroso.
    Foi aí que me dei conta.
    Me fiz em breu e vaguei até aquela torre, onde eu podia descansar minha mente. Mas fui cuspido pela escuridão, no momento em que senti uma dor intensa brotando de meu peito. Queimava, doía e ardia, parecendo devorar aos poucos meu ser por dentro. Me apoiei na parede do salão da velha construção, tremendo. Não sabia o que estava havendo com meu corpo. Eu gemia e urrava, tentando controlar aquilo. Subi as escadas de pedra, deixando meu corpo cair nos degraus de tempo em tempo, e abri a uma pequena porta que levava a uma escadaria caracol. Tentei subir pelo breu, mas muito fraco, meu corpo não se mantinha oculto nas sombras por muito tempo. Eu quase choramingava.
    No topo das escadas não havia nada, se não uma janela. Eu tive de juntar todas as minhas forças para passar pela noite sem deixar-me solidificar. E alcançar a outra torre ainda mais alta, onde só havia entrada por uma pequena fenda. Mas o quarto estava vazio. Não havia nada lá. Não pude fazer um pouso suave, sendo cuspido de novo no chão, me contorcendo.
     Grunhia.
    Meus olhos tremiam no escuro buscando por um corpo. Mas ali só o vento entrava vagamente, soprando nas pedras das paredes do quarto de forma arredondada. Apenas livros antigos estavam ali. Alguns estavam abertos, com suas páginas virando loucamente. Estavam espalhados no chão. A cama estava vazia. As almofadas no chão, e a coberta jogada no piso do outro lado do quarto.
    Me desesperei. A dor queimava meu corpo de cima a baixo. Eu nem mesmo sabia porque precisava dela ali, apenas sabia que ela amenizava aquilo. Apenas para não me perder completamente. Desde que me dou como esse ser que devora almas perdidas. Mas agora era inútil. Ela nem mesmo estava ali. Eu gostava de ler para ela, e vê-la dormir. Me acolhia e esquentava a alma fria. Mas nunca nem mesmo tivemos uma conversa. E daí foi aí que vi.
     Uma criaturinha pequena, de asas pomposas e brilhantes. Delas, saiam um brilho que cegava se eu o encarasse por muito tempo. Puis meus olhos em fendas para olha-la melhor enquanto me abraçava, rolando no chão. Ela pousou na madeira da cama, exibindo suas asas para mim.
   Tentando controlar a dor, me esgueirei tentando alcança-la com a ponta dos dedos. Misteriosamente, eles começaram a queimar a medida que chegavam perto da luz. Ardia, mas era uma dor suportável.
    -Para onde a levaste? - Minha voz saiu sufocada, quase um grunhido.
    Eu tremi, e me arrastei para mais perto da cama. Ela pulou nos meus dedos, sacudindo as asas graciosamente. Era como se minha mão estivesse no fogo, se desfazendo entre as cinzas. Então eu a agarrei em meu palmo, e a esmaguei.
    -Para onde a levaste?! Gritei.
    Do meu punho fechado saiu apenas grãozinhos de areia brilhantes, que desapareciam quando alcançavam o chão.
   Suspirei, deitando a cabeça nas pedras frias que formavam o piso, e tremi, fechando os olhos. Aquela dor não iria parar. Não. Ali ficaria para a eternidade. Pois era meu castigo.
    -Castigo... - Pensei em voz baixa.
    A dor estava sumindo. Aos poucos se esvaía de mim. Como pode? Abri meus olhos em fendas, e novamente uma luz me iluminou. Não era dourada. Não. E não transmitia calor. Era de um tom azul, triste, e frio. Era fraca, e falha.
    -Levanta-te. - Ordenou.
    Ali estava eu, me vendo. Era meu reflexo. Ele era eu. Eu era ele. Era mesmo?
    Me levantei aos poucos, cambaleando. Me apoiei na parede, quase me jogando contra ela, ainda com meus braços apertando meu tronco.
    -Quem és tu?
    -Eu sou o que te resta. - Sorriu vagamente- Sou teu milagre. Tua parte humana. - Ele sorria triste enquanto falava pausadamente. - Me despertastes quando tocou a luz.
    Levantei uma sobrancelha. Ele andou até mim devagar, e parou a minha frente, deixando a cabeça cair de lado.
    -Tu ainda tens esperança, sabia? Não vais ter a liberdade jamais. Mas ainda tens a chance de sair desse lugar.
    -Tenho mesmo? - Sussurrei, me deixando sentar contra a parede, no piso.
    -Agora podes lembrar-te, verdade? Dos tempos em que nos banhamos da luz?
    -Do que falas tu? - Cerrei meus dentes.
    -Vais dizer que ainda não te lembras?
    -Não sei que dizes. - Sussurrei, encarando meus pés. Meu corpo tremia ainda.
    Ele riu. Me agarrou com uma mão pelo pescoço e me levantou novamente. A carne daquele ser não era totalmente fria. Era morna, e passava um calor ameno.
   -Mas claro que tu sabes. Façamos um esforço. - A voz carregava frieza.
   Foi quando algo me veio a mente. Cabelos longos, levemente ondulados. De cor castanha bem clara, quase dourados quando o sol lhes possuía. Um sorriso gentil, e olhos cor-de-mel. A pele clara, e o rosto de traços leves. Mas naquela lembrança seus olhos não estavam brilhando, e sim tremendo, marejados, e assustados. Teus braços me apertavam fortemente, e dela saía uma luz forte, que queimava e afastava as sombras que tentavam se aproximar de nossos corpos.
    -Vê? - O meu outro eu me encarava sério, e calmo.
    Eu podia não perceber, mas meus olhos estavam arregalados, e eu tentava arrancar a mão dele do meu pescoço.
    -Pare... - Sussurrei. - Basta...
    -Não, não. Lembra-te de cada detalhe. Lembra-te de como eles a mataram, e jogaram-lhe a alma nesse vácuo. E mesmo assim, durante tanto tempo, ela aceitou o castigo porque queria poupar-nos do sofrimento.
   -Basta! - Me descontrolei. Minha cabeça caiu para trás, e encarei o teto tomado de breu.
    A lembrança me veio.
    "Me trancaram em um espelho, donde eu só podia assistir. A prenderam em uma pedra, com mãos e pés atados.
   Eu tentava usar as forças para explodir o vidro e libertar-me. Mas meus poderes escuros estavam fracos, porque ela ali me anulava. E o mesmo eu fazia com ela.
   Ela sabia que iriam lhe tirar o mais precioso. A vida. Mesmo sendo uma vida provisória e incerta, e mesmo sendo imortal, por eles ali, podia lhe ser arrancada. Uma vez que um anjo perde a humanidade, é apenas um fantasma, uma alma vaga, anulada do mundo e pós-mundo. Declarada a existir apenas no vácuo.
   Ela me sorriu. Não chorava. Ela era bem forte.
   Eu estava desesperado. Usava que fossem as minhas forças humanas, dando socos e jogando o tronco contra o vidro. Inutilmente.
   Em volta daquela pedra haviam encapuzados negros e bracos. Eles faziam uma oração. Os de braco. Os de negro, porém, apenas esperavam.
   Eu gritava, quase sem voz, tentando fazê-la ouvir. Mas parecia que era impossível.
   Foi quando um deles de branco se aproximou de seu corpo. Ela estava vestida de acordo com aquela época. Com um vestido de cor rosada, bem claro, quase braco. Os cabelos estavam espalhados sobre a pedra. Os olhos apenas olhavam para mim, atrás de uma parede de vidro. Me puseram perto o suficiente para que nossa conexão lhes fosse conveniente. Assim não teríamos chances de escapar. E ainda sim, poderíamos contemplar nossos fins. Ou pelo menos eu, o dela.
    Então aquele anfitrião lhe fez uma última oração, encostando as mãos em seus pés nus.
    Ela moveu os lábios, dizendo-me algo. Eu não podia lhe ouvir. E eu tinha certeza que ela tinha apenas sussurrado. Mas eu não precisava ouvir. Lhe li os lábios. Eu te amo também, movi os meus. Com meus palmos no vidro do espelho, acrescentei "tudo acabará bem", mesmo sabendo que era uma mentira. Mesmo sabendo que logo em seguida, os olhos dela não iriam brilhar mais. Dei um sorriso tristonho para conforta-la.
    Foi quando todos ali estenderam as mãos, e uma forte luz brilhou no meio do santuário. Os encapuzados negros se fizeram sombras, e foram junto a ela, sob seu corpo, e então, dali, a luz forte se intensificou ainda mais, e eu jurava que ela estava gritando. Devia estar doendo insuportavelmente. Quando eu entendi o que se passava. Lhe estavam arrancando a alma do corpo sem mata-la. Seria menos doloroso se a matassem... E então eu pude sentir. Meu corpo sendo tomado pelo breu. Senti meu coração humano se fazendo em cacos. Eu estava tão forte, que o espelho tremeu, e rachou, e se fez em pedaços quando eu saí de lá e desapareci, porque ali a luz me queimava, e estavam sem nenhuma proteção, uma vez que minhas vestes eram ainda as dos humanos, e não de breu puro.
    Eu gritei seu nome, tentando acha-la quando fui cuspido do salão oval, atravessando o teto, e ainda mais longe. E daí realmente sumi. Tinham agarrado-me, e me jogaram no vácuo. Foi tão rápido que não pude fazer nada. E senti o breu me dominando, tomando posse do meu ser, e convertendo-me a apenas uma existência sem fundamentos."
    E daí não lembro exatamente como me trancaram ali. Em uma dimensão sem fim, naquele nada, onde jogavam-me alimento como um animal, e para mim bastava aquilo se a minha "luz" estava ali para acalmar minha dor, meu vazio. Essa luz que tinha se ido agora, no presente....
    -Agora que estas com a memória fresca eis o que tens de fazer. Vai, abre um portal para fora daqui. Vai para o mundo dos mortais.
    -Quem a levou? - Eu quase não tinha forças para falar.
    -Ouça, não te distraias agora. Eu sou o que te resta de forças mortais. Se minha luz apagar estais perdido, entendestes?
    Ele falava calmamente, e eu agora não fazia esforço para prestar-lhe atenção.
    -Tens pouco tempo! Logo irão dar a falta dela, e virão atrás de mim. De ti. E daí estais perdido!
    -Cala-te, então, e volta para o teu lugar. - Eu disse com uma voz tristonha.
   Naquele momento não parava de pensar para onde a tinham levado. Por que ela não estava mais ali? Teriam lhe apagado de vez dessa existência?
    Ele sorriu, e foi se dispersando em fumaça negra.
    E senti uma chama dentro de mim.
    E me desfiz também, sentindo que a escuridão logo iria ficar para trás, e depois de tanto tempo, iria sentir calor novamente.
   "Eu hei de te encontrar. 
    Minha Cecília..."

(1)






     Eu era sua prisioneira por anos, e anos. Presa, em uma maldita torre, confinada a olhar o sol apenas por uma fenda pequena entre as pedras. Quase não passava luz por ela, e assim, deixava o quarto escuro o tempo todo. 
     Eu nunca soube bem o porque de ser prisioneira de tal criatura tão cruel. Por mim, ele tinha compaixão. Seus olhos brilhavam quando me viam. Ele me visitava algumas vezes durante o dia, mas quase sempre se sentava na poltrona verde de textura gasta e coberta de pó no canto do meu "quarto". E me observava dormir. Eu não lembro a última vez que senti medo dele. Na verdade, eu sentia pena de sua vaga existência.
     Já não lembro quantos são os anos que estou aqui. Ele me trazia livros, e algumas vezes até os lia para mim. Eu sempre resmungava, e me fazia indiferente a sua presença. O que o deixava triste. Mas ele insistia em ser cordial. Nunca lhe faltei o respeito. Mesmo sabendo de seus horrores. E ele também não fazia questão de esconder os vestígios de suas maldades. Uma vez que algumas noites eu o via com o rosto úmido de um líquido que escorria pelo seu queixo de mármore. Não se via cor - uma vez que o quarto estava sempre com o mínimo de luz. Propositalmente? Não penso. Mas ele sabia que eu não poderia odiá-lo. Não podia. O odor do líquido condenava a sua essência. Deixava-me cheia de náuseas. E eu me contraia em cima da cama, abraçada a uma almofada, não encarando os olhos que cintilavam na escuridão.
     Uma vez ou outra, eu tinha a ideia de tentar fugir. De abandona-lo e condena-lo a viver sozinho ali. Rasga-lo com o castigo da solidão. Mas isso apenas iria destruir o pouco de humanidade que ainda havia em seu coração. Então eu choramingava, sentindo o cheiro fresco da noite pela fenda fria.
     Nossa história era bonita. Começava como um conto de fadas. Mas terminou em uma desgraça. Eu sabia, de algum jeito, que terminaria assim. Mas éramos feitos um para o outro. A minha luz retardava sua escuridão. E a sua escuridão envolvia minha luz como uma brisa macia, mas que a sufocava. Ficávamos neutros um perto do outro. Assim éramos seguros. Ele era seguro. Mas a muito tempo sua natureza o consumiu. Não que ele o tenha querido. Foi nosso castigo. Não podíamos ficar juntos. Mas devíamos. Quem poderia entender? A quem podíamos protestar?
     Podem nomear-nos anjos. Fantasmas. Deuses. Forças da natureza. O que quer que focemos, era horrível. Eu não queria ser-lo mas.
     Meu trabalho antes disso, era apenas entrar na vida das pessoas, e mostrar o caminho certo a seguir. Refrescar o quão a vida é preciosa. E é. Eu mais que ninguém sei disso. Eu gostava ver a todos prosperarem. Eu gostava de ajudar. Mas, por mais íntima que eu me tornasse dessas pessoas, elas jamais iriam lembrar que eu existi. Eu só entrava em suas vidas, e saía. Como uma brisa. Faço isso desde a existência do mundo. Desde a criação das almas.
     Porém, ele também.
     Seu serviço é o contrário do meu. Ele adoecia as mentes fracas, e as fazia corromper. Era sua maldição. Ele não gostava. Mas o fazia naturalmente. Como o rei Midas. Só que ao invés de ouro, transformava tudo em escuridão e tristeza. 
    Seres como nós não deviam sentir. Mas nós sentimos. E nos envolvemos. Éramos como imãs. Perto um do outro, nosso ofício se anulava. E ficávamos fracos. Mortais. Quase humanos. Porém nossa relação era proibida. Interferia na natureza do mundo. Conspirava contra o universo. Mas nós não ligávamos. Apenas... encontrávamos calor um no outro. Era bom.
     Quando descobriram, preencheram seu coração cheio de carinho com doses e doses de seu verdadeiro instinto. Eram tempos onde a humanidade ainda era bárbara, e não foi difícil toma-lo de mim.
     Ele lutou tanto para se libertar... Mas é o que ele é.
     Ele é o breu.
     Eu sou a luz.
     E assim que deve ser.
     Não devia.

    -Não quero ouvir histórias de ti. Deixa-me só. - Eu sussurrei na escuridão do quarto. Meus pés se esmagavam um no outro, procurando calor em cima da cama.
    Ele suspirou. 
    Eu sabia que por mais que eu quisesse mostrar devoção a ele, ali ele era só uma alma vaga. Ele sentia que eu lhe era importante. Mas não lembrava meu nome. Não sabia quem eu era. Ele sentia dor quando estava longe de mim. E minha presença era sua medicina. Sua dor, era seu coração gritando pela metade que lhe foi arrancada, e a escuridão tentando mata-la e amordaça-la, queimando e pulsando, como um corte tão profundo que fazia doer os ossos. Mas era só. Ele jamais iria saber porque sentia aquilo. Seu castigo era a dor da falta, o esquecimento.
     O meu era lembrar.
     E fomos trancados no anti-mundo. Ali não era céu, nem purgatório. Era apenas um nada. Fizeram-nos um cenário de um bosque sem fim, que se estendia infinitamente. Então fugir não era lá uma opção tão boa.
     Ele me trancava na torre não por maldade. Mas porque sentia que eu era importante. E que se me perdesse sua dor iria queimar, se alastrando por toda sua existência. O pior era não poder morrer. Apenas existir com aquilo.
     E assim eram nossos dias.
     -Benjamim - o chamei com a voz abafada.
     Ele gemeu no escuro. Nunca falava. Eu quase não me lembrava de sua voz.
     -Vai. Já está anoitecendo. Alimenta-te enquanto tens liberdade. - Eu sibilei, em tom firme. - Some de minha vista.
    Eu o tratava como um animal na maior parte do tempo. Como ele não se lembrava como se portar humanamente, não fazia diferença.
    Quando ele deixava o quarto, eu chorava. Meu peito doía.
    O amor dói, sufoca e arde.
    Quando eu escutava suas vestes farfalhando para longe, eu me punha de pé, com a coberta na cabeça como se fosse um véu. Meus poderes ainda se manifestavam. Mesmo que tentaram drena-lo quase todo, eu sou feita de luz. E me divertia fazendo rabiscos de luz no ar. Eu girava até ficar tonta, cortando o ar com as pontas dos dedos, iluminando o quarto, e revelando sua estrutura. Era bom sentir o calor da luz saindo das pontas dos dedos. Mas eles eram breves. Apesar do rastro luminoso ficar por alguns instantes no ar, ele ia desaparecendo, e logo tudo voltava a ficar escuro. Então eu tentava girar até não conseguir manter-me em pé.
    -Faça-te real. Por favor... Dá-me uma chance. - Eu riscava uma porta no ar. Mas ela sempre desaparecia.
    Se ainda possuísse meus poderes, o contorno iria se solidificar, e dali brotaria madeira, como a casca de uma árvore crescendo de todo o contorno luminoso. E se faria um portal. Mas eu estava fraca.
    Benjamim tinha seus poderes por inteiro ainda. Ele apenas não sabia como usa-los, se não para alimentar-se das almas corrompidas que jogavam em nosso foço. Eu nunca tentei faze-lo usar, porque ainda sim, o amava, e sabia que se o usasse como instrumento, as outras forças iriam castiga-lo, o fazendo amordaçar de dor, e viriam atrás de mim. Nada adiantaria.
    Existia apenas uma coisa que poderia, porém, tirar-me dali. A minha morte. Impossível.
    Meus dedos tremeram no ar, e as faíscas de luz falharam. Me ajoelhei, tremendo, como sempre me perturbava, e chorei alto, sentindo as lágrimas quentes escorrendo pelas minhas bochechas. Eu as sentia corar, ficando quentinhas, quase ardendo. 
    Eu gostava dos sentimentos humanos. Eram bons. Muito brutos, mas eram bons. Nasciam da luz, mas durante a vida de um mortal eram corrompidos. Os humanos seriam puros e belos se não existisse criaturas como Benjamim.
    Eu gostava de sentir-me humana. E se eu pudesse abandonar a imortalidade para ser humana, eu o faria de bom grado.
   Me encolhi em uma bolinha no chão, abraçando minhas pernas. Sentia meus cabelos longos se sujando de poeira. Mas para limpa-los só constava de fazer-me iluminar, como uma lâmpada, e a luz me purificava. Eu gostava de sentir todas aquelas coisas. E chorar me fazia feliz. Me dava esperança de alguma forma. E me aliviava depois que eu engolia o choro e apenas soluçava.
    Então eu dormia. Me arrastava até a cama, e permitia-me fechar os olhos. Não que eu precisasse dormir. Mas eu tentava.
     Sabe, seres da luz podiam ainda ter as mesmas sensações que os humanos: o tato, paladar, olfato, visão e audição. Mas não sentimentos. Quanto aos seres das trevas, não podiam nada daquilo. Eu envolvi Benjamim com a minha luz, e ele pôde desfruta-los também. Mas normalmente, os seres das trevas apenas ocupam o breu, e entram na mente das pessoas através dos momentos mais difíceis da vida de alguém. Sua forma humana era apenas usada quando estavam muito fortes.
    Foi quando o conheci. Lembro-me que estávamos em tempos difíceis da humanidade. Não lembro mais os séculos. Mas sua forma humana era tão bela que parecia cintilar. Ainda é belo. Mas não humano. Tem cabelos castanhos bem escuros, vivos, despontados e sedosos. Muito lisos, eram mais compridos na nuca, e ele costumava amarra-los em um rabo-de-cavalo. Os olhos muito azuis, a pele tão branca que parecia estar morto - e estava. Seus dentes eram perfeitamente brancos, e cabiam no sorriso brilhante que lhe pintava os lábios. Tinha um queixo bem definido, e os contornos mais bem modelados que eu já vira. O mal tinha de ter o poder da persuasão e da sedução. Mas nunca me atraíra, afinal, tínhamos sentidos, não sentimentos. Nosso caso foi uma pérola da humanidade.
    Ainda lembro que ele era bem alto, eu diria quase dois metros. Quase. Magro, sem músculos, apenas com os braços um pouco mais robustos. As sobrancelhas bem grossas é definidas. Davam lhe um ar tristonho todo o tempo, mas não interrompiam sua beleza. Sedutor, firme nas palavras e encantadoramente intimidador. O que fazia a todos lhe temerem. Tinha aparência de um jovem adulto. Normalmente assim éramos.
    Eu não o via sob a luz a tempos. Tentava não ver sua aparência, para não alimentar meus sentimentos. Nunca entenderam porque nós podíamos ter aqueles sentimentos. Era impossível. Mas assim era. E sempre foi nosso mistério.
    Lembrando disso tudo, na cama, me encolhi na almofada. Prendi a respiração - não que eu precisasse respirar. E tentei sonhar um novo sonho.
    Onde eu era apenas eu. Nada de luz nem trevas.
    -Destrói-me. - Sussurrava solitária.
    E de repente, todo meu corpo se sentiu quente e acolhido. E quando abri os olhos, não conseguia mais enxergar. Aquela luz me cegava, e brilhava tão forte, que parecia o sol, irradiando um calor confortável. 
    Confusa, me puis de pé. Eu queria tocar a fonte daquela luz. Sim, não era apenas uma luz. Era algo. Não, alguém. E eu espremia meus olhos para enxergar sua face, inutilmente. Sorri. 
    Confusa, achei que era epenas um sonho. Mas implorei, de joelhos, deixando meus olhos marejados que quem quer que fosse, que me tivesse piedade. Não podia ser pecado amar. E uma mão brilhante se estendeu a minha frente. Eu estiquei meus dedos, vacilantes e tremendo. 
    E morri. Com um sorriso.
    
    -Levá-me dessa existência. - E meu coração desejou tão forte, que me queimou.
    E me desfiz em mil borboletas douradas, libertando-me.